Há alguma comoção envolvendo a Amazônia em meio às chamas, e frequentemente esta comoção alcança relevância internacional. Há qualquer coisa perturbadora na idéia de uma floresta equatorial pegar fogo, já que ela normalmente é associada a uma vasta malha fluvial, rios caudalosos e chuvas frequentes, por vezes particularmente intensas. E isso é verdade, a Amazônia é uma daquelas florestas ao redor da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT para os “íntimos”), o cinturão de tempestades intensas e diuturnamente recorrentes próximo ao Equador. Florestas deste tipo são chamadas de “rainforest” em inglês — e de fato há uma “simbiose”, um reforço mútuo, entre estas florestas e as chuvas frequentes que ocorrem sobre elas (e das quais elas dependem).
E de fato a ocorrência de incêndios florestais na Amazônia é um tanto quanto rara. As tempestades decerto iniciam incêndios a partir de relâmpagos, mas a natureza úmida do ambiente trata de conter os focos a pequenas áreas. É nas “bordas” da Amazônia, em especial em sua borda sul, na qual a floresta paulatinamente cede espaço à savana quente, que mais ocorrem incêndios. Não é como se no interior da Amazônia comumente ocorressem grandes incêndios, que perdurassem vários dias e consumissem áreas enormes — embora isso ocorra às vezes, quando ocorre estiagem na região (como durante alguns eventos mais intensos e prolongados de El Niño).
Estes incêndios nas bordas da Amazônia ainda assim são sérios. Se o fogaréu consome uma área muito vasta “floresta adentro”, a recuperação natural tende a resultar em uma floresta mais esparsa. Repita estas ocorrências algumas vezes numa ou duas décadas e a recuperação tende a resultar em savana. Deixe isso acontecer por várias décadas e por uma vasta região da “borda” da Amazônia e o que se tem é que a floresta “encolhe” e o Cerrado “avança” para norte, empurrando a fronteira “floresta-savana”.

E mesmo no interior da Amazônia, em áreas desmatadas não é difícil um processo análogo ao que ocorre na “borda”, criando bolsões de savana ou de floresta-savana em meio ao que outrora fora floresta. Em longo prazo é possível erradicar florestas equatoriais assim — e como se vê no Sudeste Asiático, em especial nas florestas insulares do Índico e do Pacífico Ocidental, bastam poucas décadas para quase erradicar “rainforests”.
Mas apesar da comoção acerca dos incêndios na Amazônia (reforçando: a maioria dos quais na borda sul, junto à fronteira floresta-savana), é o Cerrado quem mais sofre com os incêndios. Embora um tanto quanto surpreendente pra muita gente, alguma reflexão sobre isso deve tornar a situação suficientemente óbvia.
Ora, o Cerrado é justamente um bioma muito mais seco, mas ainda coberto por biomassa vegetal, e por isso mesmo é mais vulnerável à ocorrência de fogo. O Cerrado enfrenta longos meses de estiagem, e em anos desfavoráveis estes períodos se alargam. Sobre ele também ocorrem, esporadicamente, tempestades intensas — cujos relâmpagos podem iniciar focos de incêndio, e cujos ventos ajudam a alastrar as chamas. E por carecer de um dossel denso e fechado, normalmente venta mais sobre o Cerrado, então qualquer que seja a causa do fogo, ele se espalha mais facilmente lá do que na Amazônia.
Além disso, as atividades agrícolas ocorrem com maior intensidade e quantidade no Cerrado. Várias de nossos cultivares são, como muitas das plantas nativas daquele bioma, “plantas C-4” — e portanto mais facilmente adaptáveis ao bioma no qual já proliferam suas “primas”. E muitos dos animais que criamos descendem de bichos que pastavam pelas savanas e estepes, biomas afins ao Cerrado: e mais facilmente se adaptam a este bioma. Imagine só um rebanho de cabras em meio à floresta equatorial alagada!
Desde a época dos nativos, a agricultura tradicionalmente emprega o fogo para limpar terreno. Quanto mais modernizada as técnicas de cultivo, mais se evita o uso do fogo — mesmo assim, nalgumas situações seu uso é indicado. Portanto o Cerrado é naturalmente mais vulnerável ao fogo e também mais atrativo à agricultura e pecuária, atraindo sobre si o uso do fogo como ferramenta. E também há mais gente vivendo em cidades Cerrado afora do que Amazônia adentro — outra pressão sobre este bioma.
O Pantanal é um bioma complexo e variado, mutável com o tempo, e um tipo de “savana alagadiça”, um Cerrado alagável. Há biomas afins mundo afora, como o Delta do Okavango na África e os alagadiços da Flórida. Entretanto, o posicionamento do Pantanal mais facilmente prediria lá haver um deserto, mas graças ao escoamento atmosférico da umidade amazônica, ocorre um período muito chuvoso por lá quase todo ano. Quase. Quando ocorre estiagem, o Pantanal paulatinamente seca e, tal qual o Cerrado propriamente dito, queima.
Enquanto muitas plantas e animais do Cerrado evoluíram convivendo com o fogo, com incêndios fazendo parte de seu ciclo natural e inclusive beneficiando algumas espécies, o Pantanal é muito mais vulnerável ao fogo. Mas ele ocorre, especialmente quando a estiagem é forte e prolongada — frequentemente sob um episódio de La Niña.
Para saber mais sobre El Niño e La Niña, leia isso.
Independentemente da causa do fogo, é fácil perceber que a maior área afetada por incêndios é o Cerrado. O Gráfico abaixo mostra a proporção da área total devastada pelo fogo de acordo com o bioma, ano-a-ano, entre 2003 e início de agosto de 2024.
Em geral, perto da metade da área incendiada no país é área coberta pelo Cerrado. A Amazônia oscila entre aproximadamente 25% e 30% do total de área devastada anualmente por incêndios no Brasil, chegando a menos de 15% em “anos bons”. É um tanto preocupante haver tamanha participação da já muito fragmentada e fragilizada Mata Atlântica, que às vezes contribui em área queimada no mesmo nível da Amazônia. Naturalmente, não se espera incêndios em alagadiços, e geralmente o Pantanal tem uma participação pouco expressiva — mas anos mais secos fazem-no destoar bastante de sua norma, como se percebe em 2020, 2009 e 2005.
Restringindo o foco à Amazônia, Cerrado e Pantanal, em valores absolutos de área total devastada por incêndios ao ano, temos o seguinte:

Não surpreende que o Cerrado tenha uma área muito maior consumida pelo fogo do que o Pantanal ou a Amazônia — apesar da comoção gerada pelas imagens e notícias de fogaréu (atípico) nestes dois biomas. Desde 2021, o Cerrado testemunha um incremento significativo de área sendo consumida pelo fogo. E 2024 tem se mostrado particularmente comburente nos três biomas, e provavelmente atingirá recordes em várias décadas. La Niña vem aí, e com isso tende a reforçar a estiagem no centro-sul do país, o que deixa as condições propícias à ocorrência de incêndios no Cerrado e no Pantanal (e na borda sul, floresta-savana, da Amazônia).
Considerando o período 2003-2024 (até meados de agosto no último ano), a soma da área anualmente devastada pelo fogo em cada bioma é explicitada no gráfico abaixo:

Uma variedade muito grande de fatores, naturais e humanos, propiciam a ocorrência e alastramento de incêndios. ENSO (conferir aqui) é um destes fatores — mas ele sozinho não esclarece de maneira muito marcante o quão mordaz o fogaréu é em um ano.
No gráfico abaixo eu sobreponho os meses de El Niño (fundo em azul claro) e de La Niña (fundo em vermelho claro) de 2010 para cá. Reajustei os pontos para 31/dezembro do devido ano, pois estes são os acumulados anuais de área devastada pelo fogo. Para 2024, supus que a La Niña se estabeleça em outubro e que os totais anuais deste ano incompleto referem-se aos valores até o início de agosto.
O último período prolongado de La Niña parece ter contribuído para um aumento notável de área queimada no Cerrado, enquanto o El Niño, embora com algum atraso, tende a incrementar a área queimada na Amazônia (causa estiagem por lá). Mas as fases ENSO são apenas um dos fatores incidentes sobre o favorecimento ou desfavorecimento do fogo nestes biomas.
É possível que fatores mais “humanos”, como leis, regulações e incentivos econômicos, exerçam maior influência sobre a quantidade e gravidade dos incêndios nos biomas brasileiros. A atuação da Administração Pública, em especial o Executivo Federal, para além do discurso (geralmente vazio), também deve influir sobre o resultado geral das áreas devastadas pelo fogo, de acordo com a eficiência de seus esforços de prevenção e controle de incêndios.
Por sua própria natureza, o Cerrado é mais propenso à ocorrência de incêndios. E é neste bioma que, comparado à Amazônia, há maior concentração demográfica humana e ocorrem mais atividades econômicas. Como um todo, a vida de mais brasileiros é afetada pelo fogo no Cerrado do que na Amazônia. A despeito de tudo isso, o fogaréu no Cerrado não costuma gerar comoção.





