ENSO & PIB-BR
Uma investigação superficial sobre possíveis relações de um tipo de variabilidade climática e o PIB do Brasil — como será que os fenômenos El Niño e La Niña afetam a economia do país?
A literatura em história e arqueologia é repleta de sugestões que vinculam fenômenos climáticos ou geológicos às ocorrências sociais e políticas, frequentemente por motivações econômicas. Faz sentido, porque nos últimos milênios a maior parte da humanidade vivia em sociedades agrárias muito próximas ao limite malthusiano — então qualquer mudança brusca que se fizesse sentir sobre a agricultura ou sobre a disponibilidade de insumos diversos teria consequências que facilmente se amplificariam e se diversificariam nos meses e anos vindouros.
Mas no mundo moderno, após algumas revoluções industriais e algumas revoluções verdes, na era do comércio global e da Internet, será que variabilidade climática impacta pesadamente a economia de uma nação? Especificamente, será que as fases ENSO impactam o PIB do Brasil? Primeiro, as partes desta história…
ENSO — o que é isso?
El Niño Southern Oscilation (El Niño, Oscilação Sul) é um nome não muito intuitivo para um interessante fator natural de variabilidade climática em grande escala, com efeitos diversos sobre boa parte do planeta. O fenômeno trata do acoplamento dinâmico complexo entre atmosfera e oceano na bacia da porção equatorial do Oceano Pacífico.
De maneira geral, o que normalmente ocorre é que os ventos alísios ( ou “alíseos”, que também está correto, mas o corretor reclama ¬¬ ) sopram de leste para oeste nas latitudes próximas ao Equador em todo o globo, e isto causa um efeito de ressurgência na costa oeste da América do Sul: o vento sopra a água superficial para longe, e água densa e fria das profundezas sobe à superfície junto à costa do Peru e do Chile. Isso é muito importante porque influencia as correntes oceânicas, a circulação atmosférica, o transporte de humidade e a ocorrência de precipitação em diversos cantos do mundo.
Mas às vezes estes ventos alísios enfraquecem e deixa de haver ressurgência, aquecendo a porção leste da Bacia do Pacífico — de fato, se as águas desta porção se aquecerem, o vento tende a enfraquecer, o que tende a aquecer as águas (enfraquece a ressurgência) — e a esta variação quente deu-se o nome de El Niño. Quando os ventos alísios se intensificam, então a área de ressurgência no leste do Pacífico Sul aumenta, e as águas superficiais ficam mais frias — esta fase fria é chamada de La Niña.
ENSO é esta variabilidade climática entre as fases El Niño, La Niña e neutro (a média climatológica) do acoplamento entre oceano e atmosfera no Pacífico equatorial. Como mencionado anteriormente, há muitos efeitos decorrentes destas fases ao redor do mundo, com variados graus de intensidade e de previsibilidade.
Como El Niño é o aquecimento da porção oriental equatorial do Pacífico, há diversos meios de se medir e diagnosticar este fenômeno, desde os mais simples até alguns bem rebuscados que praticamente só interessam aos pesquisadores especialistas. Uma maneira simples e bem direta de diagnóstico é usar o índice ONI (Oceanic Niño Index), disponibilizado pela NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration, o CPTEC dos EUA): ele computa a anomalia de temperatura da superfície do mar (SST, sea surface temperature; ou TSM em português) na região Niño3.4 do Pacífico equatorial: anomalia positiva, Niño; negativa, Niña.
Mais especificamente, o índice ONI toma a média móvel de 3 meses da SST na região Niño3.4, e chama de fase neutra uma variação entre -0,5°C e 0,5°C: mais quente ou mais frio do que isso, Niño ou Niña, respectivamente. Por este índice, é possível estabelecer os períodos de El Niño e La Niña para os últimos anos, conforme visto na figura a seguir, na qual as faixas com cor quente indicam El Niño, e cor fria indica La Niña:
Fica claro que nos últimos anos houve um longo período de La Niña, que começou no segundo semestre de 2020 e seguiu até o fim de 2022. Mais recentemente, um forte El Niño, que ainda persiste nos primeiros meses de 2024, embora indícios sugiram uma nova conversão para La Niña no segundo semestre.
E PIB, o que é?
O Produto Interno Bruto é uma medida macroeconômica formada pelo valor monetário de todos os bens e serviços finais produzidos/prestados em uma dada região e em um dado intervalo de tempo. É uma medida muito complexa de se estimar, e os detalhes disso não cabem aqui. Nem sempre o PIB é uma boa medida de comparação, mas sua análise ao longo do tempo, com as devidas correções (inflação, etc), principalmente ao longo de um intervalo relativamente curto de ciclos, é um bom proxy para quando a economia como um todo vai bem (é mais produtiva) ou vai mal (menos produtiva).
Por isso o valor absoluto do PIB geralmente é menos interessante do que o valor relativo: de um ciclo ao outro o PIB aumentou ou diminuiu? Em quantos por cento? Nesta investigação será usada a variação do PIB ao longo dos anos e/ou trimestres, justamente porque é mais informativo do que os valores absolutos. Todos os valores foram atualizados pelo IPCA para dezembro de 2023, mesmo as séries que o IBGE interrompe em 2021.
O IBGE fornece a série de dados anual do PIB do Brasil, um país territorialmente imenso e extremamente diverso internamente. Um estado ou município pode “ir bem” enquanto o país como um todo “vai mal”, e vice-versa. Então o PIB nacional captura ainda menos as nuances regionais, e diz respeito a um agregado do país como um todo.
Séries históricas mais interessantes também são disponibilizadas pelo IBGE, e nelas há a estimativa de PIB municipal. Ainda melhor do que isso, elas desassociam o PIB em algumas de suas componentes, como Indústria, Agricultura, Serviços e afins. Algumas destas séries foram utilizadas na presente investigação.
Os efeitos das fases ENSO no Brasil
Mas quais as consequências das fases ENSO no país? De maneira bem resumida, El Niño, a fase quente, causa mais chuvas no Sul e sul do Sudeste e sul do Centro-Oeste, enquanto enquanto causa secas no interior do Nordeste e no sul e leste da Região Norte. Já a La Niña, a fase fria, está associada a secas no Sul e Sudeste do país, por vezes na porção centro-sul do Centro Oeste, e a mais chuvas no leste do Nordeste, centro e nordeste do Norte.
Este é um resumo quase caricato da influência das fases ENSO no país, há muito mais a ser considerado, como em que estação do ano ocorre El Niño/La Niña; diferenças em padrões de temperatura máxima e mínima; cobertura de nebulosidade, tipo (e não apenas quantidade total) de precipitação, etc. Este assunto por si só rende um texto muito longo.
Não há Niños (ou Niñas) idênticos entre si, pois a área de aquecimento do Pacífico equatorial varia de uma ocorrência à outra, bem como a profundidade da água superficial aquecida, a duração do fenômenos e quais outros fatores climáticos coincidem naquele período.
Mas por que as fases ENSO influenciariam a economia do país, alguém poderia se perguntar. Bem, em tese porque estiagens e excesso de precipitação influenciam a agricultura, a logística, a demanda por insumos e importações, os serviços prestados, etc. Intuitivamente há uma miríade de fatores sensíveis, ao menos em parte, às fases ENSO. Mas e na prática? Veremos!
ENSO & Variação do PIB Total do Brasil
Sem mais delongas, eis no gráfico abaixo a variação (trimestre a trimestre) do PIB brasileiro (total, isso é, agregando todas as componentes) entre 2010 e o terceiro trimestre de 2023.
Assim, é possível notar 2 grandes “vales” (deflação dilmística e a crise pandêmica), e um vale menos acentuado (mas ainda muito notável) do fim do segundo governo Lula e durante metade da primeira gestão Dilma. A crise dilmística é mais profunda (o PIB caiu mais) e mais larga (demorou mais para recuperar) do que a crise pandêmica — mas a Pfizer não produz vacina contra a Dilma, uma lástima!
Do ponto de vista das fases ENSO — sério que alguém imaginou que seria possível ver algo disso com as patacoadas econômicas das últimas 4 ou 5 gestões do Executivo Federal, e da perversa persistência brasileira nos mesmos erros de política econômica desde os anos 60 ou 70? Por coincidência, a pior queda do PIB ocorre durante um El Niño intenso, e a recuperação da crise pandêmica é concomitante a um longo período de La Niña.
Mas não é como se fôssemos mal no El Niño e bem durante a La Niña: noutros períodos de Niño não houve tremenda queda, enquanto o primeiro “vale”, discreto perante os outros dois, começa durante períodos de La Niña. De maneira geral, não surpreende que uma medida macroeconômica aplicada ao Brasil mostre maior sensibilidade às crises globais e aos desastres de gestão do que às variações climáticas.
ENSO & Variação do PIB: Indústria
Selecionados os 10 municípios com maior componente Indústria no PIB municipal (valor absoluto, não relativo e nem relativo ao país como um todo), é possível exibir a evolução cronológica desta componente do PIB para estes 10 municípios, e a média desta variação entre os municípios selecionados (a linha preta). É o gráfico a seguir.
O quadro geral sugerido pela média das variações do PIB-Indústria destas top-10 cidades com maior valor absoluto de PIB-Indústria é de uma longa estagnação. Individualmente, entretanto, algumas cidades mostram uma trajetória bastante dramática em seus altos e baixos. A variância é maior durante o pico (ou melhor, a mínima) da crise dilmística. Novamente, não se apreende algum padrão claro associado às fases ENSO no desempenho da Indústria para as cidades industrialmente mais fortes do país, e é notável uma ligeira recuperação na breve era Temer, mas a coisa não foi particularmente bem durante Bolsonaro pré-pandemia.
ENSO & Variação do PIB: Serviços
Mais uma vez, foram selecionados os 10 municípios com o maior valor absoluto para a componente “serviços” do PIB municipal em 2021. A linha preta indica o valor médio da variação do PIB-Serviços destes municípios no período coberto por esta investigação superficial:
É possível perceber a longa deflação dilmística e a aguda crise pandêmica que, nas cidades “top” em valor absoluto da componente “serviços” do PIB municipal, mostrou-se mais grave do que a calamitosa crise causada pela ex-presidente. A variância na crise pandêmica, uma crise aguda e intensa, é menor do que ao longo da “grande depressão” estocadora-de-vento. Mais uma vez, por coincidência, ocorreram grandes quedas durante El Niño e recuperações durante períodos de La Niña: mas a recuperação no período Niña pós-Dilma tem muita variância, indicando que a média apresentada tem pouco “valor explicativo” do comportamento geral destes municípios durante este breve período de recuperação. Atenção aos valores absolutos da variação do PIB médio — isso é basicamente flutuação ao redor de zero, um longo período de estagnação.
ENSO & Variação do PIB: Agricultura
Espera-se que o Agronegócio seja bastante mais sensível às variações climáticas, como as fases ENSO, do que a Indústria. Será, mesmo? Foram selecionados os 10 municípios com maior valor absoluto da componente “agricultura” do PIB municipal, e obteve-se uma média desta variação. O resultado é apresentado no gráfico a seguir:
Não há consistência no “sobe-e-desce” das variação média do PIB e as fases ENSO, embora haja muita variância ao longo de toda a série, com municípios que mais claramente “vão mal” durante o El Niño e que “vão bem” durante as fases La Niña e neutro. Isso sugeriria, talvez, que as atividades agrícolas específicas de cada município respondem diferentemente às fases ENSO? Isso seria interessante — e assunto de uma próxima investigação.
O Agro mostra-se menos sensível à conjuntura econômica e política geral do país, e às crises globais: a pandemia interrompeu o crescimento, mas não causou um “vale”. A calamidade ambulante Rousseff parece ter influenciado um período de estagnação e leve queda, mas sem causar um profundo e largo canyon. Isso, em conjunto com a variação “de fundo” dos municípios selecionados sugere que, SIM, de alguma forma bastante ruidosa, as fases ENSO influenciam o desempenho do Agro, especialmente em nível local ou regional — e este é o tema da próxima “aventura”.