ENSO & Agro (BR)
Uma investigação superficial sobre os efeitos recentes do El Niño e da La Niña em algumas poucas culturas no Brasil.
— Este texto continua a discussão iniciada sobre ENSO & PIB no Brasil —.
Até as primeiras décadas do século XX, as alterações de precipitação, nebulosidade e temperatura associadas à ocorrência de um El Niño (ou Niña) intenso por vezes acarretavam em crises famélicas: as safras produziam pouco, faltava comida. Houve desde então uma série de “revoluções verdes”, que possibilitaram à humanidade uma produtividade agrícola nunca antes testemunhada em alguma civilização — globalmente, produzimos cada vez mais alimentos requerendo cada vez menos área e menos insumos.
Para investigar os possíveis sinais de influência das fases ENSO na agricultura brasileira, foram escolhidas três culturas: soja, milho e arroz. São culturas razoavelmente bem adaptadas ao país, com grande repercussão econômica. Milho e soja são usadas para a alimentação humana e animal, e fazem parte importante da balança comercial do país, já que exportamos bastante.
Mais sobre as consequências do El Niño
Quando o El Niño incide durante o verão, o padrão típico é ocorrer maior acumulado de precipitação na Região Sul. A frequência de sistemas transientes, tais quais frentes frias, aumenta, e com isso não só chove mais, chove com maior frequência, do RS até o sul de MG e do MS. Por outro lado, em geral o interior da região Nordeste e as porções sul e leste da região Norte enfrentam déficit hídrico. As temperaturas no país tendem a aumentar como um todo, em especial no interior do Sudeste e na região Centro-Oeste.
O inverno sob o El Niño tende a ser menos frio na região Sul, e menos seco no Sul e no Sudeste do país. A estiagem no interior do Nordeste e em parte da região Norte persistem. Todo o centro-sul do país tende a ter maior cobertura de nebulosidade durante um inverno concomitante a um El Niño.
O excesso de chuvas no Sul do país tende a dificultar a semeadura, sendo também propícia a pragas de fungos e de insetos quando as plantas começam a crescer. Às vezes as plantas apodrecem antes da colheita. O excesso de nebulosidade também atrasa o desenvolvimento e maturação de vários tipos de plantas, que precisam de luz para crescer. E em terreno alagadiço ou em solo muito úmido, é mais difícil colher.
Mas o El Niño pode ajudar a mitigar o déficit hídrico em regiões mais secas, o que pode ser útil a alguns tipos de plantas. Não costuma ser o caso, no Brasil, de plantas preferirem um ambiente mais quente do que o encontrado aqui, então as ondas de calor no centro-sul do país podem ser um revés aos cultivos de plantas de clima temperado, especialmente frutas e “verduras”.
Mais sobre as consequências da La Niña
Em muitas coisas a La Niña é o inverso do El Niño. Durante o verão as temperaturas máximas não costumam ser tão elevadas no centro-sul do país, mas este efeito é muito discreto. Chove mais no Nordeste como um todo, especialmente no interior, e o litoral tem chuvas mais frequentes. Chuvas bastante intensas na porção norte e noroeste da região Norte. O mais chocante, porém, é a estiagem no Sul, Sudeste e boa parte do Centro-Oeste: ainda chove, claro, menos do que a normal climatológica. As “chuvas de verão” são igualmente intensas, apenas menos frequentes — e os episódios de ZCAS sobre o Sudeste também tendem a rarear.
A seca é ainda mais intensa durante o inverno, que tende a ser mais frio na região Sul, em partes do Sudeste e com episódios mais frequentes de frio intenso e até geada no MS, oeste de SP, oeste e sul de MG. Quando há períodos prolongados de La Niña, o Pantanal tende a se tornar uma savana, que seca muito durante o inverno e pode sofrer com incêndios na primavera. A costa do Nordeste testemunha maior nebulosidade e episódios mais frequentes e volumosos de chuva, e chove razoavelmente bem no interior da região.
Por trazer mais chuva ao Nordeste, a La Niña acaba mitigando o déficit hídrico de algumas culturas. Não fosse a estiagem, frutas de clima temperado seriam beneficiadas no Sudeste e Sul do país. A intensa e prolongada estiagem, no entanto, mais ajuda do que atrapalha a maioria das plantas — e inclusive o excesso de luminosidade pode atrapalhar o ciclo natural de algumas culturas.
ENSO & Soja — nada muito estranho
O Brasil é um dos maiores produtores de soja do mundo há vários anos, tornando-se o maior produtor ao longo da última década. No país, a região Centro-Oeste é a maior produtora, com vários municípios em GO e MS tendo recorde de safra nos últimos anos. Como um todo, o estado que mais produz soja é o MT.
Esta é uma cultura “high-tech”, irrigada (frequentemente usando pivô-central), bem monitorada (às vezes até por drones), usa cultivares de elevada produtividade (por vezes GMO) e incentiva as indústrias auxiliares de defensivos agrícolas, fertilizantes e adjuvantes a dar o seu melhor e atender esta demanda crescente, mas muito exigente em qualidade. Ela tende a sofrer com a estiagem provocada por períodos de La Niña, e a ser menos sensível aos períodos de El Niño: com sorte, ele até ajuda um pouco (principalmente nas regiões menos “canônicas” de plantio, mais áridas).
A figura abaixo ilustra a evolução cronológica da diferença percentual da produção total de soja, ano a ano, no Brasil e no MT (o estado que mais produz), com as cores de fundo indicando os períodos de El Niño e La Niña.
Períodos longos de La Niña de fato tendem a derrubar a produção total de soja, tanto do Brasil como um todo quanto do MT, o estado maior produtor de soja. A alta tecnologia embarcada no cultivo de soja pode mitigar os efeitos iniciais da La Niña (ou os ignorar, se ela for suficientemente curta). Como um todo, a produção total cresceu ao longos dos últimos anos, por isso o uso da variação anual.
A produtividade da soja (quantos kg de soja são produzidos, em média, em um hectare) aumentou continuamente nos últimos anos, mas a longa La Niña de 2020 em diante impactou a produtividade nacional — mas não a do MT, provavelmente às custas de maior investimento em irrigação e afins. Este cenário pode ser apreciado na figura a seguir:
O boxplot a seguir, construído apenas com dados referentes ao país como um todo, mostra que há maior variância da produção em anos de La Niña (com a mediana indicando queda de produção) e pouca sensibilidade ao El Niño, que se manifesta em uma “caixa mais larga” do que a da fase neutra da ENSO.
Milho — algumas surpresas
Milho é a mais produtiva (em calorias por área) das culturas, uma planta moderadamente resistente a períodos de pouca chuva e mais sensível à nebulosidade e ao excesso de chuva. O Brasil costuma figurar no top-5 dos maiores produtores mundiais de milho, estando na terceira posição nos últimos anos. Também é uma cultura economicamente muito importante ao país, e insumo para alimentação humana e animal. O maior produtor de milho por aqui também é o MT, embora o top-50 dos municípios com maior produção seja bem espalhado pelo centro-sul do país.
Importante notar que milho cresce rápido. Rápido o suficiente pra permitir múltiplas safras ao longo do ano. Os dados utilizados computam a soma agregada das três principais safras anuais de milho — a vantagem é que não é necessário ponderar a época do ano do evento, e a desvantagem é que se perde a diferenciação entre períodos distintos de um mesmo ano (o que seria interessante em uma análise mais detalhada acerca dos meses específicos das fases ENSO e produção de milho).
A figura a seguir ilustra a variação de produção total de milho, no Brasil e no MT, em meio às fases da ENSO nos últimos anos. Não se observa uma correlação forte entre as fases ENSO e acréscimo ou decréscimo de produção em relação ao ano anterior, mas há uma tendência relativamente clara de que o milho não curte o El Niño.
Curiosamente, embora tenha havido ganho constante de produtividade do milho ao longo doa anos, a produtividade do país como um todo supera a produtividade de MT. Isso sugere que talvez haja maior aporte de recursos e tecnologia noutros cantos, e os produtores do MT estão mais focados em outras culturas (como a soja) e não evoluíram tanto quanto o resto do país em relação ao milho.
Como o esperado, milho não curte El Niño, mas o boxplot da variação de produção nacional surpreende ao sugerir que ele curte a La Niña. Talvez isso seja reflexo do ganho de produtividade como um todo, com incrementos decorrentes de técnica e tecnologia que coincidiram com períodos de La Niña, ou seja apenas questão da baixa granularidade dos dados analisados. É, no entanto, um resultado inesperado.
Arroz & ENSO — mas heim!?
Arroz é complicado. As técnicas tradicionais de cultivo de arroz, uma planta interessantemente produtiva (em caloria por área) são muito custosas e exigem muito trabalho para preparar o terreno, socar, alagar, ressocar as mudas, fazer a manutenção adequada do fluxo hídrico, catar as ervas daninha, colher, debulhar… Há vários cultivares de arroz, de duas ou três espécies distintas, e várias formas de cultivo. É uma cultura trabalhosa!
Os dados utilizados aqui agregam todos os tipos majoritários de arroz (nada de arroz arbóreo!), nos principais tipos de plantio. Facilita a vida, dificulta a análise. Mas é coisa superficial, lembra?
O Brasil raramente figura no top-10 dos produtores de arroz, embora o consumo interno seja consistente. O maior produtor, de longe, é o Rio Grande do Sul. E o RS é bastante afetado pelas fases ENSO, particularmente pelo El Niño. Arroz gosta de água, mas é um bicho, perdão, uma planta chata. O treco “enjoa”, não gosta de muita chuva — chega a apodrecer. Não gosta de muita nebulosidade, às vezes nem brota, ou mal brota, por haver muitos dias nublados no fim do ano (especialmente durante um El Niño).
Mas o arroz, ah o arroz, o arroz fica pra próxima!