O erro fundamental da Esquerda
Caso haja qualquer coisa consistentemente possível de ser nomeada "esquerda", tal coisa está profunda e perigosamente equivocada a respeito de uma concepção basal de sua visão de mundo.
Preâmbulo
Não me parece haver algo que consistentemente possa ser chamado de “direita” e de “esquerda”, e as pautas transitam entre estes polos ideológicos imaginários de maneira bastante livre ao longo do tempo e do espaço. É demasiado difícil ser historicamente consistente com tais termos, utilizando-os como se contivessem uma descrição objetiva e bem delimitada que os distinguisse suficientemente bem entre si, configurando um rótulo explicativo bastante útil, bastante preciso e bastante objetivo.
Não é difícil enunciar listas muito longas de proposições que são em um momento parte do repertório “de direita”, noutro momento já são “de esquerda”, e nem é raro que, em um mesmo momento, no local X uma pauta seja “de esquerda”, mas considerada “de direita” no local Y. Exceto por auto-identificação tradicional, quando por exemplo um partido ou instituição se diga “de direita” ou “de esquerda”, muito embora seus posicionamentos tenham variado demasiadamente ao longo do tempo, defendendo proposições outrora (e/ou noutros cantos) consideradas como pertencentes ao leque propositivo do polo oposto, não é realmente muito útil e nem faz muito sentido dizer “esquerda” e “direita” — é majoritariamente uma falsa dicotomia entre categorias que, a rigor, são inexistentes ou no mínimo demasiadamente nebulosas.
Também não é difícil retornar à disposição das assembleias francesas logo após a Revolução para tentar, em vão, encontrar alguma substância à matéria. Se é verdade que tais termos referem-se ao posicionamento (muito momentâneo) de interlocutores naquele ambiente bastante peculiar e muito precisamente identificado no tempo e no espaço, sua tentativa de generalização, embora amplamente aceita, carece de sentido. Selecione um enunciado avulso e questione o que nele o identifica como “de direita” ou como “de esquerda” — pessoas só um pouco melhor educadas não terão muita dificuldade em torturar as palavras para perfazer tal tarefa.
No entanto, considere o mesmo enunciado avulso ao longo do tempo e do espaço, e por vezes ele é defendido “pela direita” ou “pela esquerda”, por vezes atacado por ambos, por vezes promovido por ambos. É, como já disse, uma falsa dicotomia imposta sobre pretensas categorias nebulosas e muito mal delimitadas, inconsistentes ao longo do tempo e do espaço. Daí, inclusive, discussões tolas sobre o que é “esquerda de verdade” ou “direita de verdade”, ou se determinada corrente política ou movimento político/ideológico é ou foi “de direita” ou “de esquerda”: justamente porque, no fundo, tais termos fazem pouco sentido.
É um pouco mais fácil identificar a tal “esquerda”, pois muito frequentemente ela encerra em si um afã “revolucionário”, um tanto quanto destrutivo, e quase sempre anti-Capitalista (ou se traveste disso). Talvez seja um pouco coerente agregar como “de esquerda” toda visão de mundo melhor enunciada que encerre em si o mencionado afã de “o mundo está podre, deve ser purificado com fogo para abrir caminho à utopia vindoura”, embora o início do século XX traga consigo certas visões de mundo profundamente anti-Iluministas que dificilmente poderiam ser chamadas de “de esquerda”, posto que abertamente se contrapunham a ela.
A tal “direita”, por sua vez, possui ainda menos coesão interna, e é um rótulo genérico aplicável a todo grupo que se opuser à tal “esquerda”. Um dominionista que se vê como cristão tradicional tem muito pouco em comum com um anarcocapitalista libertário, e ambos possuem pouco em comum com um supremacista racial anti-comunista — mas a oposição destes grupos exóticos e muito dissimilares entre si à tal “esquerda” lhes impõe o rótulo compartilhado de “direita”.
Este primeiro texto trata, portanto, do erro fundamental da tal “esquerda”, enquanto um próximo tratará do caso da tal “direita”.
Que este mundo podre queime! E que renasça melhor!
Um erro fundamental da “esquerda”, mas fundamental mesmo, no sentido de que dele derivam muitos outros, é o axioma de que o Capitalismo é ruim/prejudicial e que precisa ser destruído/superado ou no mínimo profundamente reformado. Apesar das quase infinitas — e muitas vezes autofágicas — vertentes do que quer que seja esta quimera que chamamos de “esquerda”, é razoável supor que um de seus axiomas de maior alcance geral é que o conjunto estrutural do sistema político, econômico e social atual está condenado e, pior, até ruir trará nada mais do que desgraça, miséria e sofrimento a milhões — bilhões — de humanos desesperados.
Insistindo na quase onipresença axiomática deste fundamento em meio à “esquerda”, o entendimento (muitas vezes sem quaisquer bases objetivas) de que “o sistema” vigente é qualquer coisa dentre as mais nefastas possíveis e a urgência de sua destruição é o que, afinal, pode agrupar Anarquistas e Stalinistas na mesma categoria de conjunto ideológico ou político. De maneira mais discreta, ou melhor, oferecendo soluções menos agressivas a este problema (cuja existência é tida como garantida), esta crença permeia também os Trabalhistas, os Social-Democratas e qualquer coisa que se autodenomine “centro-esquerda” ou “esquerda-liberal”.
(aliás, numa digressão extra, o fato de alguém se dizer “esquerda-liberal” já é quase que uma confissão de que a esquerda é, em geral, iliberal ou anti-liberal: e este é um de seus maiores problemas; a minha proposta aqui é sugerir que uma das causas deste enorme problema é um de seus fundamentos: o axioma de que o sistema vigente é nefasto e precisa ser destruído/superado)
Em outra ocasião eu foco em elencar, objetivamente, características mensuráveis que sugiram muito fortemente que, a despeito de todas as suas falhas e da enorme possibilidade de implementação de mudanças benéficas, o tal “sistema” nem de longe está condenado à ruína: o que chega a ser bom, porque no fim das contas ele traz prosperidade material aos seres humanos.
A questão é que, partindo deste fundamento — esteja ele correto ou não — tem-se a conclusão lógica de que há necessidade extrema de garantir que o Capitalismo seja extinto o mais brevemente possível. Com este fim em mente, os meios tem de ser afins à tarefa requisitada: destruir toda a estrutura econômica, social e política vigente. Os meios para a destruição de algo são quase que necessariamente violentos. Muitas vezes são extremamente autoritários, também.
Assim, não chega a ser surpreendente que a “esquerda” tenha recorrentemente utilizado de meios violentos e autoritários para alavancar suas pautas: outra constante que liga Anarquistas a Stalinistas, sindicalistas a panfletários engajados universitários, etc, é a onipresença da agressividade física e de um flerte — muitas vezes um romance promíscuo — com o autoritarismo.
Quando o objetivo confesso é destruir uma civilização, mesmo que alegando a “salvação da plebe”, não se pode fazê-lo economizando em balas e bombas, sem derramar muito sangue e sem desrespeitar inúmeros direitos e liberdades individuais. Razão pela qual os “não-revolucionários” sempre despertam desconfiança entre os militantes “de esquerda”, muitas vezes sendo repelidos pelos mais exaltados ou simplesmente considerados ingênuos e tolos.
Ouça um líder estudantil discursar, ou melhor, esgoelar; ou um líder sindical; uma eminência política “de esquerda” num comício. Leia artigos, panfletos, propaganda ou livros ideologicamente abertamente apologéticos da “esquerda”. Repare no vocabulário de origem militar utilizado: luta! conquista! ocupação, invasão; resistência! Repare no número de figuras de linguagem que exploram analogias com guerras ou violência explícita — e repare bem que nem sempre são figuras de linguagem!
Parte deste linguajar bélico é devido a uma estratégia de marketing muito eficiente: o arrebanhamento de jovens à militância. Jovens são fáceis de entusiasmar e muitas vezes são obcecados por violência: uma violência romantizada, mas ainda assim violência. É compreensível que líderes e autores busquem criar e manter laços afetivos, irracionais, usando a linguagem mais apropriada e, neste caso, a bélica cumpre bem seu papel. Mas boa parte deste linguajar é mera decorrência do objetivo militante: destruir as estruturas sociais na qual se insere: o que requer violência, luta, resistência!
A fim de que cessem as opressões, a miséria, o sofrimento e afins, é aceitável que sacrifícios sejam feitos. Por sacrifícios eu quero dizer a limitação ou supressão de direitos individuais. Liberdade de expressão, de pensamento, de agremiação? Banais, se sem eles a justiça puder ser alcançada. Presunção de inocência? Devido processo legal? Penas proporcionais? Se até o direito à vida pode ser, em certas ocasiões, posto de lado como sacrifício à consecução do objetivo, do êxito na guerra santa, por que não estes direitos? É a tempestade que antecede a calmaria, o juízo final que trará o paraíso ao mundo — um mal necessário.
Se os direitos dos “inocentes” pode ser revogado em nome da Revolução, o que será dos “perpetradores”, daqueles identificados como os responsáveis pela miséria humana, os culpados pela existência do mal, os que — alega a militância — movem as peças do tabuleiro e comandam ou se beneficiam do “sistema”? Ai! Ai deles! Sequer a defesa intelectual de seu ponto de vista é concedida, conforme os universitários esquerdistas anglófonos nos ensinaram recentemente. Ai dos danados! Como disse Tertuliano, suas penas servirão para que os beatos melhor compreendam sua própria beatitude no paraíso. Que espetáculo maior ou melhor é oferecido ao militante do que a visão de um porco capitalista, opressor, sendo feito em pedaços enquanto grita e sangra?
Enquanto o juízo final não chega, uma boa distração é “socar nazistas”, piscam os militantes — e sorriem de maneira sádica.
As diversas vertentes da esquerda podem divergir amplamente a respeito do mundo que se pretende construir ou de que forma se deve agir para consegui-lo, mas este fundamento quase onipresente aqui discutido demanda uma urgência na resolução do problema tal que diversas vezes se desdobra no abandono de valores Humanistas. Em nome do repúdio à situação vigente — que pode ser desconhecida a inúmeros militantes e intelectuais, e geralmente o é! — a dignidade humana é deixada de lado. Por vezes a própria Razão é posta de lado, quando identificada como um dos suportes do “sistema” vigente. Assim, o compromisso da “esquerda” com os valores Iluministas é, quando muito, retórico.
Não há espaço para Razão, objetividade, parcimônia e mesmo aos Direitos Humanos quando, por ojeriza irracional às condições vigentes — muitas vezes mais fantasiadas do que conhecidas — o objetivo final é a destruição destas condições. Perdem-se oportunidades de se criar valor material e intelectual e de promover o bem-estar humano e as liberdades individuais quando se aceita justamente abrir mão destas coisas por nojo, fúria ou ódio de uma realidade mítica que exige sangue e fogo para se tornar paradisíaca.
O furor anti-Capitalista característico da esquerda é o pilar sobre o qual se assentam os arcos mais sombrios do Totalitarismo genocida de Stalin, Mao, Pol Pot e outros. O abandono da razão e da objetividade pela esquerda pós-moderna, por entender que estes são elementos basais do “sistema”, também ocorre como resposta lógica ao repúdio anti-Capitalista: alega-se que a misoginia machista, homolesbotransbifóbica, etc, é um pilar do Capitalismo opressor. As vertentes anarquistas lutam ferrenhamente contra a própria mão que a alimenta e contente abandona os Direitos Humanos e a parcimônia intelectual quando o assunto é destruir o Capitalismo. Os trabalhistas e reformistas flertam com o autoritarismo e a truculência quando a questão é, à sua maneira febril e fantasiosa, acabar com o Capitalismo de forma “pacífica” e, se possível, democrática.
Muitas das piores características da esquerda são decorrentes deste erro fundamental. Ela só tem a perder com este erro. E o mundo nada ganha desta forma. A questão que fica é: existe esquerda que não cometa este erro? Se sim, por que aceita ser chamada de “esquerda”, ao lado das atrocidades e crimes contra a humanidade cometidos por Stalin, Mao e outros? É mesmo possível ter ojeriza e nojo à situação vigente, ansiando por sua mais célere destruição, e ainda assim não apenas respeitar, mas promover direitos e liberdades individuais?
A primeira versão deste texto, sem o preâmbulo e alguns pequenos retoques, foi publicada em maio de 2017 aqui. Seu texto complementar, também acompanhado de uma versão modificada do presente preâmbulo e de retoques, será logo publicada neste Substack. Para não perder o texto sobre o erro fundamental da “direita”: