A uns é óbvio, a alguns é controverso, mas a verdade é que humanos são animais — e disso decorrem muitas consequências. Frequentemente, muitas das pessoas que superficialmente estão cientes da Evolução deixam de perceber as consequências da condição humana, ou então aberta e conscientemente se opõem a elas, negando-as. E não é de hoje que se nota que a maior e mais importante resistência intelectual à Evolução não é a que emerge de grupos religiosos mais literalistas, mas de Acadêmicos que retém status de especialistas e/ou de intelectuais, frequentemente capazes de influenciar Instituições formais da sociedade ou políticas públicas, e que frequentemente influenciam ou dirigem setores inteiros da sociedade, como Educação Básica (ou até Superior) e Mídia — ao contrário dos religiosos literalistas.
O Macaco-Anjo
Também é óbvio que animais são seres vivos, do que decorre possuírem necessidades materiais diversas, tais quais nutrição e condições ambientais específicas. Tais necessidades podem ser exaustivamente descritas em detalhes bioquímicos e físicos, ou sinopticamente avaliados de uma maneira mais abstrata através da etologia, ecologia e de investigações cognitivas, por exemplo. Ao lidar com formigas, pulgões, rãs, garças ou até com chimpanzés não costuma haver tantas objeções ao estudo objetivo das necessidades físicas que limitam o comportamento (e circunscrevem as características) destes seres.
A história é outra, porém, quando se trata humanos como animais. Descrever objetivamente as necessidades e limitações físicas que modelam o comportamento humano frequentemente levanta objeções entre multidões de assim considerados especialistas e intelectuais. Nietzsche diria, com algum grau de humor e sarcasmo, que ainda veem o homem como um híbrido entre animal e anjo, um receptáculo corpóreo de uma essência metafísica inapreensível à matéria — e que apenas o baixo ventre faria os doutos se lembrarem da (para eles lamentável e talvez repugnante) condição animal humana.
Até um passado recente, noções que hoje a maioria dos intelectuais considera ridículas, tais quais alma, espírito, graça e afins, eram elencadas para diferenciar os homens de seus parentes que comem, bebem, defecam, copulam, dormem, nascem e morrem. A putativa essência divina e imaterial humana seria senhora de suas aspirações e diretora de suas ações. Inspiração divina e maldições explicariam o comportamento humano em geral e as ações específicas dos indivíduos. O vocabulário poderia incluir tentações, provações, natureza pecaminosa e afins.
Nossos especialistas e intelectuais contemporâneos geralmente rejeitam este arcabouço teórico. Entretanto, tal rejeição se aplica antes às ferramentas do que às conclusões. Para chegar a conclusões similares, muitos substituíram espírito e graça por “cultura” e “criação” — entidades teóricas melhor definidas e que frequentemente podem ser objetivamente avaliadas. Um novo arcabouço teórico para impor aos humanos, e especialmente aos humanos, forçantes extra-corpóreas e imateriais ao seu comportamento — pois humanos seriam receptáculos materiais de uma essência imaterial.
É tão fácil recorrer à “cultura”, este dom quase divino concedido aos homens não por deus, que não mais é aceito como explicação pela maioria dos intelectuais, mas pela… evolução (!?), para explicar qualquer observação ou alegação concernente aos humanos. Por que tal subgrupo (alegadamente) age de tal forma? “Ah, é cultural”, dizem tanto, e sorriem satisfeitos! Outros ampliam o “cultural” ao “social”, e no fim do dia não há um consenso acerca do que cultura ou “social” significam — são frequentemente termos com definições nebulosas para se referir a uma putativa causa imaterial do comportamento humano.
Por mais nebulosas que possam ser as miríades de definições para “cultural” e “social”, é inegável que exista tais fenômenos — cultura e sociedade. E ainda que centenas de livros possam ser escritos para discutir exaustivamente a precisão do que significam, frases abstratas como “o homem é um animal social” ou “o homem é capaz de, e provavelmente obrigado a, desenvolver cultura” parecem ser (e provavelmente são) objetivamente verdadeiras.
Do baixo-ventre à poesia
É raro que se objete que humanos precisem se alimentar e, consequentemente, defecar. Aqueles que dizem ser possível “viver de luz” existem, mas não são levados a sério em meio à intelectualidade. Aqueles que rejeitam determinadas necessidades nutricionais humanas existem, inclusive na Academia, mas por enquanto ainda não compõem a visão majoritária em meio aos intelectuais, muito embora vários destes negadores das necessidades nutricionais humanas requeiram primazia em status ético. E embora seja óbvio à maioria das pessoas que humanos tem instintos reprodutivos imensamente pungentes, áreas inteiras da Academia negam, parcial ou totalmente, tal realidade.
Ainda assim, com algum pesar, a enorme maioria das pessoas e da classe intelectual é bastante ciente das necessidades e limitações físicas impostas aos humanos por sua biologia. Médicos não só existem, mas costumam ser bem pagos e gozar de status elevado, justamente porque lidam com nossa natureza demasiado humana e com a progressiva decadência de nossos corpos, pois não ficamos mais jovens com o tempo. É ponto pacífico que o baixo-ventre seja um fenômeno objetivo e universalmente aceito — e nem o mais fervoroso dos defensores da imaterialidade como causa suprema do comportamento humano nega a intensidade e urgência com a qual um episódio de disenteria dita nossas ações subsequentes.
Não é o caso quando falamos de arte, poesia, política e afins — aqui vigora majoritariamente a opinião de que a “alma” do homem, ou a “inspiração divina”, lhe guia o comportamento. É marginalmente compreensível que, diante da complexidade e variedade de certos tipos de comportamento humano, muito díspares dos demais animais e por isso mesmo vistos como distintivos da humanidade, tais comportamentos sejam vistos como “além” da corporeidade em causa e/ou motivação. Um soneto, no fim das contas, não é uma tíbia após uma colisão, uma mão inadvertidamente exposta às chamas ou movimentos peristálticos — não provém do tal “baixo-ventre” e afins do qual tratam os médicos.
Curiosamente, no entanto, a sexualidade — intimamente ligada ao baixo-ventre (e nem sequer como metáfora!) — hoje é majoritariamente vista por especialistas e intelectuais mais como um software produzido pela Apple, decorrente do arbítrio de uma camarilha, do que como uma disenteria ou dor de cotovelo após um esbarrão na porta. Áreas inteiras da Academia discutem o sexo dos anjos, tomando aqui anjos como metáfora para as alegadas motivações imateriais do comportamento humano, e muito desta discussão orienta políticas públicas — o ser humano é menos racional e muito mais racionalizante do que querem os filósofos!
Decerto nenhum animal produz óperas, longas epopéias, blockbusters da Marvel nem discute o orçamento destinado à saúde pública em um parlamento. Faz algum sentido que leigos suponham que nada há entre os bichos que sequer se assemelhe a tais coisas e, portanto, não seria a matéria humana a motriz de tais ações. Um equívoco compreensível, portanto — mas ainda assim um equívoco!
Infelizmente para os “platonistas” de nossa época, e para os “dualistas” de todo tipo, há precedentes animais para os mais complexos e convolutos comportamentos humanos. Da fala ao discurso no Senado, da escolha da fonte em um cartaz à composição de uma música “chiclete”. Acontece que a Evolução, com E, nos permite investigar como somos capazes daquilo que somos capazes — e especular por que e em que medida temos tais capacidades.
O que somos capazes de Ser e Fazer
Independentemente do quanto se tente, não é possível ensinar um cachorro a falar, um cavalo a escrever, uma abelha a compor uma ópera (ou um carioca a seguir as leis, mas isso seria uma digressão). Tampouco é possível ensinar um bebê a voar, a respirar debaixo d’água, a farejar cocaína dentro de uma mala a 30m de distância em um aeroporto lotado ou a botar um ovo. Não nos costuma causar espanto que um tatu não seja capaz de voar, ou que um colibri não seja capaz de cavar. Poucos objetariam que águias voam pois são capazes de voar, e que toupeiras cavam pois são capazes de cavar.
Aplicar o mesmo raciocínio aos humanos costuma ser um sacrilégio, sobretudo em meios intelectualizados. E por experiência própria, tal heresia frequentemente é acompanhada de um sem número de acusações mirabolantes e às vezes de tentativas de impor ostracismo. Sugerir que humanos falem porque são capazes de falar, produzam música porque são capazes de produzir música e vivam em sociedades complexas porque disso são capazes é, embora muito óbvio, uma heresia.
Como dito anteriormente, embora “cultural” e “social” sejam termos fugidios e obscuros, é inegável que cultura e sociedade de fato existem. E enquanto a maioria veja em tais termos um ponteiro para indicar as putativas causas imateriais do comportamento humano, se humanos de fato vivem em sociedades nas quais existe cultura, então somos biologicamente capazes (e provavelmente compelidos a) desenvolver sociedades complexas nas quais há cultura.
Não faltam autores que abordam humanos conforme o que eles são, animais. Dawkins frequentemente toma humanos como exemplo em seu O Gene Egoísta. Já O Terceiro Chimpanzé, de Diamond, é próximo a uma atualização do bom e velho O Macaco Nu, de Morris. Leda Cosmides é pioneira em uma profícua empreitada intelectual para que a psicologia integre ao seu arcabouço a natureza animal humana no contexto da Evolução. Demografia, cultura, sociedade, religião e violência, dentre tantas outras coisas, podem ser investigadas a partir de uma abordagem objetiva e material dos humanos como seres biológicos, e Ian Morris, Peter Turchin, Steven Pinker, David Buss, Diana Fleischman, Pascal Boyer, David Reich e tantos outros são capazes de manter em mente a biologia humana e suas intrínsecas necessidades materiais em suas investigações.
Humanos são providos de enorme plasticidade comportamental em diversas áreas. Tal plasticidade é circunscrita às limitações físicas, fisiológicas e cognitivas de nossa biologia. A plasticidade mencionada não é apenas limitada por nossa biologia, mas sua existência decorre de nossa biologia. Esta plasticidade é, portanto, uma característica fenotípica (estendida) do ser humano.
Por exemplo, humanos sadios são capazes de desenvolver linguagem falada. Não meramente capazes disso, mas compelidos a tanto. Todo humano saudável, criado em um ambiente minimamente propício, desenvolverá linguagem falada — ao contrário do que ocorre com cágados, tubarões, pardais, coelhos ou chimpanzés. Nossos genes fornecem meios para desenvolver as ferramentas anatômicas e cognitivas que não só permitem o, mas compelem ao desenvolvimento da fala: a linguagem falada é uma característica fenotípica do ser humano.
Idiomas, dialetos, variantes linguísticas, etc, fazem parte deste fenótipo, pois são descrições da enorme complexidade de nossa linguagem falada em conjunto com nossas interações sociais. É certo que um humano saudável falará, não apenas porque ele é capaz de falar, mas porque de fato é compelido a isso. Desenvolver linguagem falada é materialmente imanente à nossa biologia, dela emergindo nossa linguagem.
Idiomas (e dialetos, etc), entretanto, não são diretamente determinados por nossos genes. Idiomas existem dentro do escopo de nossas limitações fonéticas e cognitivas, mas suas características específicas emergem de um contexto complexo que remonta às interações sociais por vários milhares de anos. Somos geneticamente compelidos a capacitados a falar, mas não a falar alemão, japonês ou hebraico. É o contexto social e histórico no qual um indivíduo específico é inserido em seu nascimento que indica qual (ou quais) idioma falará, quais variantes utilizará, quando e com quem — e isso é constantemente alterado ao longo da vida daquele indivíduo.
Portanto, idiomas são legítimos construtos sociais, entidades culturais ou como for que queira indicar que emergem de complexas interações sociais específicas a determinadas comunidades em contextos históricos relativamente bem determinados. Idiomas existem porque são manifestações específicas da capacidade (e necessidade) humana de desenvolver linguagem falada — e variam conforme a plasticidade possível em virtude de nossa biologia. Os diversos níveis e tipos de interações interpessoais e intergrupais que interagem com a capacidade humana de desenvolver linguagem falada e influenciam na emergência dos idiomas, dialetos e variantes são, eles mesmos, também emergentes da biologia humana. Temos cultura e vivemos em sociedade porque somos biologicamente capazes (e muitas vezes compelidos) disso, de desenvolver cultura e viver em sociedade.
Hereges: para que servem?
Em última análise, sociedade e cultura são fenômenos emergentes da imanência material humana, ou seja, da biologia (e esta da bioquímica, que emerge da física e assim vai). É óbvio, chega a ser tautológico e não é necessário ser um gênio para compreender isso. Deveria ser um ponto pacífico. É, no entanto, frequentemente uma heresia enunciar isso.
A verdade é que, embora verdadeiro e bastante óbvio, frequentemente não parece ser útil recorrer à emergência biológica para investigar um fenômeno social. É verdadeiro e óbvio que o idioma alemão existe em decorrência da capacidade biológica humana de desenvolver linguagem falada — assim como todos os demais idiomas naturais (e artificiais!). Em quê isso ajuda na investigação da história e desenvolvimento do idioma alemão, ou na investigação de onde e por que é falado nas regiões nas quais observamos que é falado, ou então em como e por que ele tende a evoluir da forma como indícios sugerem que ele evolua?
De um ponto de vista superficial, recorrer à obviedade de que um idioma específico, em última análise, existe como uma especificidade das capacidades biológicas humanas parece ser inócuo e pedante. E apenas enunciar esta tautologia pode mesmo ser nada mais do que pavonice e pedantismo.
Entretanto, ter em mente esta obviedade ajuda a selecionar as ferramentas de análise objetiva das questões. A linguística, com muita propriedade, usa ferramentas estatísticas e fundamentos teóricos oriundos da filogenia e genômica para reconstruir o histórico dos idiomas e suas mutações fonéticas e estruturais. A ecologia é uma ferramenta útil para compreender como as variantes idiomáticas emergem ou se extinguem, quando são usadas por tais e quais grupos, etc, e a psicologia evolucionista ajuda a orientar investigações demográficas e sociológicas para explicar por que indivíduos com tais e quais características sociais (como riqueza, status, etc) tem maior ou menor vantagem reprodutiva em tais e quais contextos, correlacionando tais fatores a idiomas, dialetos e variantes faladas, e como, a partir de uma visão “memética”, gírias e mutações fonéticas e estruturais se alastram ou se extinguem.
Ter em mente a tautológica noção de que humanos fazem e são o que lhes é biologicamente possível ser e fazer orienta as ferramentas investigativas objetivas e empíricas acerca do que é humano. E ter em mente esta tautologia ajuda a eliminar as sugestões de influência imaterial no comportamento humano, mantendo, portanto, vínculo com a realidade.